Sabe-se que os estatutos de servidores públicos preveem a aplicação da penalidade de demissão ao servidor que praticou, durante o exercício de suas funções, infração de natureza grave, após averiguação em Sindicância Administrativa.
A dúvida surge quando a penalidade de demissão é aplicada ao servidor que já se encontra na inatividade, usufruindo o benefício da aposentadoria.
Alguns estatutos disciplinam a matéria prevendo, nestas hipóteses, a aplicação da pena de cassação da aposentadoria. O artigo 127, IV da Lei Federal n.º 8.112/90, que disciplina o regime jurídico dos servidor públicos da União, prevê, inclusive, expressamente, esta penalidade.
É evidente que os referidos dispositivos estão em consonância com as normas constitucionais que regiam a previdência, antes das reformas e avanços provocados, principalmente, pelas Emendas n.ºs 20/98 e 41/03.
No entanto, hoje, não nos desvinculamos do entendimento de que estes dispositivos afrontam o art. 5°, XXXVI da Constituição Federal, na medida em que o direito a aposentadoria por tempo de contribuição, com o cumprimento dos requisitos, passaria à condição de direito adquirido.
É que o fundamento primordial dos regimes próprios é de assegurar, mediante contribuição, aos seus beneficiários os meios de subsistência nos eventos de incapacidade, velhice e falecimento.
Trata-se de uma garantia de bem estar dada para os servidores que fazem parte do sistema, ou seja, aqueles devidamente inscritos e que realizam periodicamente suas contribuições previdenciárias.
Nas lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o serviço previdenciário deve ser “entendido à semelhança do contrato de seguro, em que o segurado paga determinada contribuição, com vistas à cobertura de riscos futuros”.[1]
Embora não seja a realidade nacional, é certo que este é o objetivo a ser alcançado, principalmente após a instituição do caráter contributivo da previdência, razão pela qual alguns dispositivos previstos no regime jurídico dos servidores, contrários à Constituição e aos interesses da Administração, ficaram ultrapassados.
Tanto é que alguns estatutos ainda preveem a contagem do tempo de serviço em dobro, o que hoje é claramente e expressamente vedado pelo § 10 do artigo 40 da Constituição Federal.
Diógenes Gasparini afirma, corretamente, que o servidor efetivo tem o direito de ver contado, para fins de aposentadoria, o tempo de contribuição para o regime de previdência, dada a garantia de contagem desses tempos. [2]
O que ocorre, ao nosso ver, é que a natureza jurídica da aposentadoria do servidor público passou de “prêmio” para “benefício previdenciário”, originado exclusivamente de contribuição previdenciária mensal.
Antes da reforma da previdência aprovada em 16 de dezembro de 1998, a Constituição exigia a comprovação de tempo de serviço para concessão da aposentadoria e permitia a contagem de tempos fictos (conversão de licença prêmio, contagem em dobro, arredondamentos e outras permissões estatutárias).
A nova redação trazida ao artigo 40 da Constituição, pela EC 20, incorporou à previdência dos servidores públicos o princípio da contributividade. Em suma, a contributividade significa que, para ter direito a qualquer benefício da previdência social, é necessário que haja contribuição para manutenção do sistema previdenciário.
A demissão acarreta na perda do cargo público e, consequentemente, na perda da qualidade de segurado, impelindo a não percepção de vencimentos e a ausência de contribuição previdenciária. Isto significa que a partir da aplicação de uma eventual demissão, não podemos computar nenhum tempo de contribuição a favor do servidor.
Contudo, se o servidor completou os requisitos para aposentadoria, não pode a penalidade por infração funcional infringir o direito adquirido. Portanto, é inconstitucional a aplicação de pena de cassação da aposentadoria se os efeitos da penalidade imposta forem posteriores ao cumprimento dos requisitos.
Caso contrário, teríamos a questão de como ficaria o tempo de contribuição deste servidor. O servidor poderia computar todo o seu tempo de contribuição para a futura aposentadoria em regime posterior (seja, RGPS ou regime próprio de outro ente estatal), ainda que diverso, ou nenhum tempo lhe restaria para se aposentar em outros regimes?
Nesta hipótese, se o servidor puder contar o tempo de contribuição para levar a outro regime, poderia aposentar-se no regime que completou os requisitos (se antes da aplicação da penalidade). Se o servidor não puder contar mais o seu tempo de contribuição em nenhum regime, estaríamos aplicando uma penalidade exagerada, obtendo vantagem ilícita pelas contribuições vertidas em todo seu tempo funcional.
Aliás, nenhum segurado do regime geral de previdência, por condenação criminal ou outra condenação da esfera da União, tem sua aposentadoria cassada, devendo cada penalidade ser aplicada somente na sua esfera (penal, civil, tributária, previdenciária, etc.).
É claro que subjetivamente, em alguns casos, analisando a possibilidade de falta disciplinar, acharíamos justa a cassação, como medida de punição, mas, a correção disciplinar não pode afetar os direitos previdenciários adquiridos, devendo o órgão previdenciário, apenas, cumprir os ditames e princípios constitucionais na esfera previdenciária.
Além disso, a Constituição Federal proíbe expressamente as sanções perpétuas, capitais, cruéis e degradantes (art. 5º, III e XLVII, “b”, “c” c/c art. 60, § 4º, IV). A finalidade constitucional é de após punir, reconduzir o infrator ao convívio social, em respeito às garantias fundamentais à liberdade e à dignidade humana.
Além de afrontar diversos princípios a cassação da aposentadoria por ilícito funcional, ao nosso ver, alcança condição desumana e irrazoável, por condenar o servidor perpetuamente.
O próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já apontou a incompatibilidade entre as leis que determinam a cassação de aposentadoria como sanção disciplinar, com a nova ordem constitucional estabelecida após as reformas constitucionais, que tornaram o regime previdenciário dos servidores públicos um sistema de caráter contributivo e solidário (Agravo Regimental 2165948722014826000050000, TJSP; Mandado de segurança nº 2091987-98.2014.8.26.0000, TJSP).
Assim, parece-nos que a aplicação de penalidade de cassação de aposentadoria ao servidor que tiver completado os requisitos para a aposentadoria antes dos efeitos da decisão disciplinar é demasiadamente injusta e inconstitucional.
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2000.
[2] GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003
Por: Douglas Tanus Amari Farias de Figueiredo